Meninos soltando pipas, 1948 (PORTINARI, Cândido) |
Céu de anil, límpido, poucas nuvens ousam despontar e ocultar este tempo de luz intensa que reaviva e dá cores à paisagem, retarda a boca da noite. Cenário perfeito para ela voar soberana ao vento da mais sincera irresponsabilidade..., na mais irracional liberdade. Liberdade de imaginário pueril. É esta sensação inocente que atrai, muito mais que o colorido da pipa em contraste com os nuances de azul da imensidão do infinito. Liberdade nacarada no infinito azul da paisagem furta-cor: a pipa voando no céu... O céu azul como aquilo que nos envolve sem prender, todavia sempre nos faz transcender...
Pipas, 1941 (PORTINARI, Cândido) |
Essa louca sensação se desfaz quando deixamos de olhar para o alto e, xinamos nos limites do finito, do aqui embaixo. Percebemos, então, que ela está por um fio. Um fio que o firmamento esconde como esconde o véu formado pelas gotas da chuva de verão, percebido somente a poucos metros do chão. Liberdade por um fio, que de tão indefeso e manipulador precisa ser passado num pó cortante misturado a uma espécie de grude. É o fio com cerol que dilacera e nos ajuda a sentir a sensação de liberdade segura. Pois ela pode ser perturbada, cortada, pela liberdade de outrem.
Daí, tornar-se-á liberdade desacorrentada em queda quase livre. Pois, mesmo antes de cair é tão desejada, cobiçada, que às vezes nem chega a cair. Logo, desprendida pode enroscar-se ao fio de outra liberdade, num emaranhado arado ou, pelo contrário, ao cair por terra, deve acorrentar-se às mãos de um novo destino, que forja uma nova sensação inocente ou, livremente, ressuscita àquela vetada pela indefinição de um tempo de arrebol, pela noite que subsume o colorido e a torna, se insistente, cruenta liberdade... impregnada de reveses.
Meninos soltando pipas, 1947 (PORTINARI, Cândido) |
Minha liberdade nunca mais sentiu o prazer de um dia de sol, que faz irromper todas as cores na seda e esconde o fio do existir... Não me permitiu mais olhar para o alto e sentir o infinito que me fazia transcender, flanar, xinar leve nos braços da paz azul... Não tenho mais aquela estrutura leve com pele de seda ao vento. Ela está amarada a um fio inquebrável, mesmo contra a lei que quer torná-la livre liberdade vulnerável. O fio que antes eu descaia sem desprender e sumia na imensidão do meu devaneio de luz, não me permite nenhum voo. Nem ensinar a brincar de liberdade eu sei... Careço do céu de Brodowski, cheio da liberdade dos meninos de Portinari.
(Hadson de Sousa)
Adorei esse texto!!! Maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso... *-*
ResponderExcluirO seu texto - a exemplo de outros de sua lavra - é leve, lírico, poético... tem a feição alada e descompromissada de se deixar levar pela linguagem, pelas emoções, pelo sabor do reflexo imediato, das impressões momentâneas...
ResponderExcluirIsso não quer dizer, obviamente, que o texto - ilustrado com as expressivas e belas imagens do mestre Portinari -, interpondo as palavras à sugestão da imagem, abdique do belo, da elegância que caracterizam a sua escrita (particular, elegante, irretocável).
Mas escrever é exatamente isso... um se desprender, um se revelar, um se permitir, um ousar onírico e gracioso...
Escrever é conhecer se dando a conhecer... sempre...
Beijos n'alma...
Parabens!
Joel Cardoso
Fiquei pensando como é bom soltar pipa, como é bom soltar-se.
ResponderExcluirMe senti livre lendo seu texto.
Penso que aproximaste com maestria essa sua linguagem do belo e da expressão, com o cotidiano de todos nós outros mortais.
Parabéns!
Abraço bem apertado como lhe é bem particular.
Robson Feitosa